As escolhas conservadoras de Lula – O ovo da serpente

Em nome da tal governabilidade, até mesmo parte da esquerda vem aceitando com relativa tranquilidade algumas nomeações de Lula para o primeiro escalão do seu governo. Foi assim com a já demitida ministra do Turismo, Daniela Carneiro. Continua sendo assim com o atual Ministro dos Esportes, André Fufuca, colocado lá em substituição à respeitada Ana Moser, que, diga-se de passagem, vinha fazendo um bom trabalho à frente da pasta.

No âmbito do Judiciário, porém, o buraco é mais embaixo. Começando pela escolha de Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula, para o STF. Sem colocar em causa suas aptidões profissionais, depois de mais de vinte anos de uma sólida carreira como advogado, o fato é que a escolha de Zanin desagradou tanto a esquerda quanto à direita. A direita, com sua usual hipocrisia, devido ao histórico de proximidade de Zanin com Lula, chegando ao ponto de questionar suas aptidões técnicas para o cargo. A esquerda, devido ao passado conservador de Zanin, já refletido em algumas das suas primeiras decisões.

Nada disso parece importar ao atual Presidente. Com a escolha de Zanin, Lula deixou já claro que, na sua versão 3.0, será adotada a lógica do seu antecessor. Nomeações para cargos importantes são escolhas pessoais, valendo mais o grau de amizade e confiança do que critérios, digamos assim, mais republicanos.

Não surpreende. Muitos apontam que umas das principais falhas de Lula em seus primeiros governos foi menosprezar o aspecto estratégico nas suas nomeações para os órgãos de cúpula do sistema judiciário. Adotando a salutar iniciativa de nomear o primeiro colocado na lista tríplice encaminhada pelos próprios Procuradores da República, o atual Presidente respeitou a autonomia e independência do MPF e escolheu nomes não necessariamente alinhados com sua posição política e, principalmente, não relacionados com critérios outros, tais como amizade pessoal, “governabilidade”, etc. O mesmo se diga em relação ao STF, com escolhas de nomes com perfis diversos, mas bem vistas à época, com a exceção apenas de Dias Toffoli, o qual, porém, já contava com uma longa folha de serviços prestados a governos petistas. Entre essas escolhas, inclui-se também Joaquim Barbosa, festejado à época e posteriormente tido como o principal algoz do PT, durante o julgamento do mensalão.

Daí se explica a mudança de postura. Muito mais pragmático e experiente, sabendo também dos desafios que precisará enfrentar, Lula descartou o personagem “Lulinha paz e amor” e veio para a guerra. Aparentemente, na visão do atual governo as nomeações para cargos do Judiciário devem deixar de lado os compromissos republicanos e até mesmo as promessas de representatividade, um dos motes da sua campanha que vem sendo paulatinamente abandonado (vide caso Ana Moser, mencionado acima). Como contraponto, Lula indicou Edilene Lobo e Vera Lúcia Araújo para o TSE e Carol Proner para a Comissão de Ética da Presidência. São bons nomes, mas para cargos secundários, sem grande relevância política.

E o que falar da escolha de personagens do tipo de Paulo Gonet Branco para a PGR? De histórico até mais conservador do que Cristiano Zanin?

Não se pode questionar suas credenciais. Membro do MPF há mais de três décadas, Paulo Gonet Branco tem um currículo invejável, inclusive com destaque na academia, dividindo com Gilmar Mendes a autoria de um dos mais celebrados livros de Direito Constitucional. Recentemente, se notabilizou também por, na função de vice-procurador-geral eleitoral, ter chefiado o Ministério Público Eleitoral nas eleições de 2022, não deixando de defender a urna eletrônica e a própria Justiça Eleitoral dos ataques de Bolsonaro, inclusive tendo apresentado parecer ao Tribunal Superior Eleitoral opinando pela condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro por abuso de poder político, quando este, no entanto, já estava inelegível por condenação anterior.

Por outro lado, seu conservadorismo também é inquestionável. Suas posições referentes ao aborto, sua atuação na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos na ditadura e seu apoio à Lava-Jato tornam seu nome quase intragável para parte da esquerda, além de angariar aplausos de parlamentares como Bia Kicis, antítese do discurso que elegeu Lula.

É a amizade com Gilmar Mendes, no entanto, que mais explica sua indicação. Não apenas dele, mas também de Alexandre de Moraes, outro apoiador de sua indicação. É aí que mora o perigo. Mais uma vez, fica a impressão de que Lula cedeu ao pragmatismo, escolhendo o PGR não por critérios republicanos ou de representatividade, e nem mesmo por afinidade político-ideológica ou para agradar seus eleitores (pelo contrário). Escolheu Gonet Branco para fortalecer sua relação com aqueles que poderão ser seus algozes, em troca de apoio político incerto de um Poder que deveria estar à margem das negociatas políticas.

Por outro lado, há pelo menos mais um aspecto a ser considerado. Lula vem tentando “terceirizar” o combate ao bolsonarismo, deixando a tarefa à cargo do STF enquanto tenta trazer pra si parcela do eleitorado do ex-presidente, já com vistas às eleições de 2026. Não deixa de ser uma boa estratégia eleitoral, mas o preço pode ser alto demais. Assim como na manutenção de Múcio como Ministro da Defesa, Lula continua apostando no seu tino político para equilibrar elementos progressistas e conservadores no seu governo. Insiste em querer agradar gregos e troianos.

É aí que se encaixa também a escolha de Flávio Dino para o STF. Repetindo pela enésima vez sua tática de “bate a assopra”, Lula faz um grande afago às esquerdas ao nomear Dino para a Corte Suprema. E o fez deixando bem claro o viés ideológico da indicação, ao ressaltar sua felicidade por “pela 1ª vez na história desse país, conseguimos colocar na Suprema Corte um ministro comunista, um companheiro da qualidade de Dino”. De fato, as qualidades de Dino justificam a indicação e reforçam a estratégia de combate ao bolsonarismo no âmbito do Judiciário, ao mesmo tempo em que retira da linha de frente do seu governo uma voz ativa nesse combate. Não deixa de ser, portanto, uma escolha conservadora, apesar do aceno em sentido contrário.

Resta saber quem virá para o seu lugar. Chegou-se a cogitar o nome de Ricardo Lewandowski, mas parece que essa opção já foi descartada e já se fala até na atualmente Ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet.  À prevalecer o conservadorismo e o pragmatismo de Lula até o momento, dificilmente teremos alguém à altura do antecessor. Lula tem feito más escolhas na área jurídica e essa parece que será mais uma.

De qualquer forma, o ovo da serpente já está gestado com as indicações de Zanin e Gonet Branco. Só o futuro dirá se se trata de mais uma manobra política genial de Lula ou novo passo em falso na luta contra as forças reacionárias que ainda chafurdam na lama em busca de recuperar o protagonismo perdido nas últimas eleições.